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O QUE EU SINTO, O QUE EU OUÇO E O QUE EU VEJO… E O QUE EU NUNCA VI

Um menino de 10 anos foi jogado n’água de cima da popa dum batelão, numa brincadeira de mau gosto que um amigo do seu pai fez. Quando o agressor se apercebeu de que o moleque não sabia nadar, pulou desesperado para tirá-lo de um afogamento evidente. O desespero foi geral, e deu até um salseiro medonho. A criança foi salva, ainda bem, mas aquela brincadeira espantosamente irresponsável lhe rendeu um trauma de infância que se reverbera até hoje: ele nunca aprendeu a nadar, e nem nunca quis, e tem repugnância a rios e piscinas profundos.

Esse fenômeno está atrelado visceralmente ao sentir, e obedece àquilo que a estrutura freudiana convencionou denominar de sensações, sentimentos e circunstâncias inesquecíveis. Um sinal estigmático perpétuo para quem jamais venceu e superou um determinado medo ou fobia. Eu sinto medo de afogamento. Diante disso, examinei o meu sentir, e nesse ambiente da minha já meio procrastinada memória, eu consegui agrupar alguns sentimentos que se registraram com singularidade na minha história de vida, nos meus tropeços e nas minhas convicções.

Eu já senti pavores… muitos deles… Uma vez, quando um avião de pequeno porte no qual eu viajava a trabalho para Autazes ia caindo, eu me apavorei. É… literalmente os motores pararam e ele plainou perto das copas das castanheiras. O próprio piloto lançou o presságio de “game over”, e eu quase morro antes mesmo da provável queda. Mas, imerecidamente, fomos salvos por um milagre que devolveu o fôlego àqueles motores escangalhados e fumacentos. Nunca mais embarquei de novo num avião de pequeno porte. Eu sinto suores só de pensar em entrar num aviãozinho daqueles de novo. Inclusive já perdi excelentes oportunidades de emprego por isso.

Noutro episódio absurdamente nefasto, eu me assombrei diante da lâmina relampejante de uma faca porruda que riscou o meu bucho certa tarde de um outubro qualquer, empunhada por uma alma que desconhecia os limites da vida, e que dizia me amar, mas que intentou me atravessar com aquele punhal, devido ao ódio abominável que mora dentro do ciúme, e porque era chegada a hora da partida… Era o reconhecimento de que as nossas realidades não se fundiam mais, porém, a não aceitação daquele desfecho desencadeou em nós uma quase tragédia. Tive que ‘fugir’ rápido para não morrer. Sinto medo de facas e armas em mãos de gente colérica, de gente irascível e que abre a porta do seu coração para o desequilíbrio e para o rancor.

Já ouvi vozes invisíveis do tempo cantando e berrando debaixo do temporal, como aquelas músicas lindas e inesperadas que tocam dentro das coisas mais exóticas que existem. As notas melódicas que saem das costas do sapo-cururu de pau muirapiranga, que deixa de ser um simples ‘souvenir’, para repercutir sonante em nossos ouvidos. O som secular que vem do disco de aço que trisca na corda dançarina do berimbau irresistível. As músicas enigmáticas da cuia de coité “macêta”, emborcada na água, sufocando na música para nos aprazer. A sinfonia surreal  que vem do caroço do umari cavado, que vira uma ocarina que chora músicas… Verdadeiras súplicas tocadas. E já ouvi também cantigas amazônico-latinas que irrompem dos atrasos imperceptíveis que há nos dedilhados fugazes das cordas duplas do charango, utensílio musical pequeno, poderoso, especial… Mas também eu já ouvi ‘sinfonias’ de covardias ímpares, de traições sem precedentes, de discórdias inimagináveis, tocadas por gente ruim, de orquestras pérfidas… Hoje eu fujo de gente que me abraça, que me conquista e que me cobra taxas posteriores de afeição doada. Me afasto e repilo gente que se superioriza e que se acha pura demais no meio dos perdidos. Certas músicas eu desprezo, não ouço nunca, elas são tóxicas.

E eu já vi coisas que até os olhos inerrantes duma águia faminta e atenta duvidariam. Já vi cascos enormes de tracajás com emblemas de times nas paredes de ripas dos cabôcos espalhados pelo interior. Já avistei a companheira do amigo dançando com ele, mas com a mão atada à mão do outro amigo dele que dançava perto deles a mesma canção. Já presenciei o triunfo de um sujeito desacreditado, que a gente não depositava um único níquel na capacidade dele. Também já vi prostitutas que abjuravam com fervor o sentido do substantivo família se tornarem mães contemplativas, que somente à Maria (da Bíblia) se poderia compará-las. Mas vi filhos roubando, matando, esfolando os pais, e também já vi o contrário. É… eu já vi de quase tudo possível nessa vida, mas eu nunca vi esse tal futuro melhor que, quando eu era criança, todos me diziam que ele iria chegar. Esse eu ainda não vi…

Também ainda não vi um político inescrupuloso dar a mão à palmatória, se é que existe palmatória para as mãos deles. Não vi ainda um eleitor cego voltar para agradecer o milagre da visão regenerada, da consciência recobrada, da determinação de dizer não aos políticos patifes e embusteiros. Para ser sincero, eu ainda nem vi esse milagre, nem mesmo em mim, que já joguei tantas vezes fora as minhas escolhas, por cegueira, por ignorância, por estupidez. A cegueira é conceitual e peçonhenta. Quem dera ela fosse uma piscina rasa, onde jamais se morre afogado. Oxalá ela fosse um aviãozinho de brinquedo, que quando cai não mata ninguém. Quem dera mesmo ela fosse uma faca sem ponta, sem fio, sem mãos que a empunhassem. Quisera ela ser agora uma música sincera, que fala com clareza singular de amor e de amizade sempiternos. Já senti muito. Já ouvi muito. Já vi muito… Mas eu ainda não vi tudo. Eu acho mesmo é que nós ainda não vimos foi nada! Deus seja conosco, e nossa dê visão!

Da Redação: Paulo Queiroz para o Portal Voz Amazônica e para a Rádio Cultural da Amazônia

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1 comentário
  1. CARLOS SILVA Diz

    O que eu ouco sinto e vejo.
    Nessa narrativa várias nuances se agrupam nos pensamentos de muitos.
    Traumas, medos dúvidas mas uma gritante superação com bálsamo a curar os males que o passado nós ofereceu.

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