São também os efeitos dos mal-entendidos jurídicos que acabam por desmurar os pilares do amor humano. | Imagem: Divulgação/PVA.
São também os efeitos dos mal-entendidos jurídicos que acabam por desmurar os pilares do amor humano. | Imagem: Divulgação/PVA.

Mesmo com toda a carga de obscurantismo que injetaram no final da criação, e em seu contexto nada idílico, há sim forte margem de concordância com o arcabouço literário “Tomista”, de modo muitíssimo especial quando a mensagem da obra dialoga fortemente com a ideia de que a alma humana é subsistente em seu existir moral, imortal em sua essência e única em cada ser humano irrepetível, o que nos faz a todos tendermos naturalmente para Deus.

“The Goat Life”, para ser franco, deveria ser mais uma dessas criações corriqueiras que aborrecem “critiquistas” desarrazoados e que despertam vigoroso sentimento de frenesi nos detratores plantonistas, mas, para a melancolia destes, “Vida de Cabra” merece muito mais do que a pecha de acontecimento trivial da criação humana, pois é um feito alvissareiro e cheio de virtudes iluminadoras desde o primeiro minuto que aporta em nossas retinas. A ficção ajuda a tornar fortes as bases de sobrevivência humana, mas a realidade, que é extrema, e que é pedagógica, e que quando espremida e entortada verte lágrima, suor e sangue, tem mais valor: eis a ressonância de “Vida de Cabra”, uma realidade que aporta o tráfico de vidas e de espíritos, bem no âmago do fogo que nunca morre.

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Najeeb compreendendo o desafio de fugir da morte, mas, sentimentos já impregnados nele, de compaixão e misericórdia, o impeliam a permanecer olhando pelos animais. | Imagem: Divulgação/PVA.

Tem coisas que somente o Direito Natural nos oferta e há capacidades sobrenaturais que apenas a fé pode realizar em nós. Nesse particular, São Tomás de Aquino, cognominado de “O Príncipe da Escolástica”, ovacionado pensador que lá dos medievos fez cruzar séculos a sua destreza e cuidado em erguer ponderações cheias de fé e razão, presenteou a humanidade com a espantosa certeza de que a alma não morre jamais. Estava certo o mais sobranceiro pregador cristão da razão e da prudência, até hoje reverenciado.

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A vida íngreme passando bem diante dos olhos do cativo, que não se via há muito tempo, e ausência de alternativas para a liberdade. | Imagem: Divuilgação/PVA.

Em um mero olhar detido, consegue-se perceber o “Tomismo” em “Vida de Cabra”, mormente pelos sinais evidentes de esgotamento e morte, contra um anseio incontrolável de viver e de ser livre. Não fosse mesmo verdade isso, qual a razão de três corpos e estados mentais trucidados pela morte iminente, esquálidos pela fome, ressequidos pela sede, consumidos pela desidratação e massacrados pelo trauma da mentira e do engano, quereriam tanto sobreviver no meio do fogo esfarelado, de grãos incendiados sob seus pés e peitos? O que mais justificaria o poder de querer sair respirando de dentro de um lençol afogueado de fuga, sem nada para suprir o tudo de necessidade?

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Quando os sentidos, cheios de ranço e repletos de angústia, não conseguem vislumbrar o ‘milagre’ e a ‘salvação’. | Imagem: Divulgação/PVA.

Desde sempre, sabemos que a gravíssima desarmonia entre o trabalho e a justeza – em qualquer parte do mundo – representa um edema social cancerígeno que destrói sonhos e dignidades, e nesse campo perigoso, o trinômio ingenuidade – aspiração – necessidade, compõe os limiares da porta de entrada para a exploração da força de trabalho humana. Não é diferente da corrupção (que é medular e espinhal), que assola quase o mundo todo, sobremodo os países da América Latina, Ásia, África e nações Médio-Orientais, e nem difere do engodo que subprofissionaliza indivíduos, enganando-os sobre o sentido real de sonhos, e que atordoa a suas necessidades basilares.

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Os restos mortais do velho pastor, que morreu de tanto trabalhar. | Imagem: Divulgação/PVA.
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A carne putrefata do velho pastor sendo devorada pelos abutres. | Imagem: Divulgação/PVA.

A propósito da ingenuidade, nesse quesito em separado, Najeeb protagoniza com elevada azáfama a sua própria ruína, por acreditar excessivamente nas pessoas (o calcanhar de Aquiles de muitos), e ainda por cima, inspirar o inculpável Hakim, jovem cheio de afã, ilibado em estratagemas e impoluto em maldades, ambos aliciados – assim como centenas de trabalhadores honestos – pelos criminosos que lançam mão do Costume (fonte enérgica do Direito) para consolidar intenções de crudelíssima índole. O trabalho é algo assim sagrado, cuja defesa deve ser circunspecta no olhar e intransigente na operacionalidade, em todos os lugares habitáveis e desabitáveis do planeta.

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Nunca desistir da fuga, mesmo parecendo impossível. | Imagem: Divulgação/PVA.

Quem nunca testemunhou isso?! Quando sobra desgraça, catástrofe, desespero e abismo, abre-se o pórtico exclamativo da fé como gota derradeira. O “Tomismo” enlaça – de uma só vez – Ciência, Razão, Filosofia, Fé e Teologia, numa ousada relação quinária que sufraga em plena contemporaneidade estudos medievais que redundam no aqui, ali, alhures, sem quase nenhuma oposição. Então, se de fato nada há no intelecto que antes não tenha passado pelos sentidos, a fé é um sentimento que tem ‘ossatura’ estruturada na polêmica. Caso duvide, veja Najeeb saindo da própria alma, em disparada, intentando um encontro trágico com a morte, depois de tudo engendrar para sobreviver àquele desenfreado infortúnio.

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O amaldiçoado pelejando contra a criatura que impediu o seu autossacrifício. | Imagem: Divulgação/PVA.

O miserável zeloso das cabras perdeu a fé, cegou-se pela sofreguidão, emudeceu-se pela insuportabilidade das agruras, amoucou-se pela dureza dos dias e pela excruciante humilhação que dormia e acordava em diuturno ao seu lado, e sem esperanças, acelerou os pés depauperados, ulcerados e meio-apodrecidos, na direção do desfiladeiro à frente, mas “palm’edentro” (como diriam os “cabôcos”), já na beirada do precipício, fora represado em sua intenção de morrer pela aparição inopinada, bem na sua cara, de um abutre monumental, que lá embaixo se fartava, com seus outros irmãos dos ares, do cadáver já decomposto de um velho pastor, que morreu de demasiado trabalhar, cujo semelhante destino provavelmente estava separado para Najeeb. O enorme abutre impede o encanzinado Najeeb de se precipitar para a morte, mas mesmo assim teve que lutar com ele.

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Tomás de Aquino, “O Prícipe da Escolástica”, para quem a alma é imortal. | Imagem: Divulgação/PVA.

Vamos nos deitar sobre apenas um pedaço dessa colcha “Tomista” de prazeres escritos e de “divinismos” verbais arrebatadores… Um pedaço de “Adoro Te Devote”:

Eu te adoro com afeto, Deus oculto,
que te escondes nestas aparências.
A ti sujeita-se o meu coração por inteiro
e desfalece ao te contemplar.
A vista, o tato e o gosto não te alcançam,
mas só com o ouvir-te firmemente creio”.

Hakim, o mais sofrente dos foragidos do deserto, também o que mais clamava, ouvia sempre o ensurdecedor silêncio de Alá, entre as brasas de sílica, a sede mortal de vidro e a fome ruminante de pedra, onde, junto com Najeeb e Khadiri, rasgava-se todo no outeiro ardente d’areia, abandonados por Deus. Talvez, se tivessem forças para falar, vociferariam os escritos da parede da cela de Auschwitz: “Se existe um Deus, ele terá que implorar pelo meu perdão”. Convém lembrar, todavia, da pessoa de Khadiri, um criminoso foragido da Justiça e também escravo dos sequestradores, misterioso como pareceu, se dedicou exclusivamente a ajudar os seus colegas na fuga do cativeiro maldito.

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A pureza de Hakim aniquilada pela confusão mental e pelo sofrimento extremo. | Imagem: Divulgação/PVA.

A percepção da realidade, àquela altura, não se apresentava condizente com o ideal elementar “Tomista”, pois, sob o ponto de vista lógico, o ‘milagre’ ocorrente deveria suceder da parte divina – no caso, Alá –, mas foi Khadiri quem descortinou uma fenomenologia salvadora que daria a sobrevida cabal a – pelo menos – Najeeb, uma vez que Hakim sucumbiu na aflitiva confusão mental resultante de tantas mazelas experimentadas naquele ambiente climático nefando, culminando com a extinção de sua vida pelo sangue que golfava da boca mirrada. Quando tudo parecia irremediavelmente perdido, e quando as portas da morte se abriam para acolher também Nejeeb e Khadiri, a ‘mercadização’ eclode de um nada alegórico.

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A certeza da morte e o desejo autofágico da derradeira água. | Imagem: Divulgação/PVA.

Uma garrafa – e não era uma garrafa qualquer – sem rótulo, sem símbolos, sem marcas, mas com o emblema máximo de uma semiótica infalível e terrífica, entregava aos semimortos o sinal da esperança sobrepujada. Como bem prescreve a ubiquidade (não como princípio, in casu), a Coca-Cola, o consagrado monstro imperialista de todos os lugares e cantos, ao mesmo tempo, traz no arcabouço de “Vida de Cabra” uma garrafa, como dito, sem rótulo, em cuja expressão se torna desnecessário para o reconhecimento do objeto em si. Uma garrafa de Coca-Cola, por mais limpa ou vazia que esteja, e até mesmo quebrada, sempre será um símbolo de realidade em si mesma.

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A garrafa inconfundível tão-somente serviria como vasilhame para guardar a água salvadora no encontro com o oásis à frente. | Imagem: Divulgação/PVA.

A Coca-Cola, deleitosa e extraordinária como é, naquele contexto, ainda que dentro de uma ideia auspiciosa, cuja garrafa inconfundível tão-somente serviria como vasilhame para guardar a água salvadora no encontro com o oásis à frente, desmantelou o encantamento daquela criação, já em seu quase-final. Isso porque a aparição daquele objeto se pacificou como uma intenção clara e apelativa da obra em abscindir os tentáculos da genialidade e da emoção daquela tão especial criação, e se fez marketing. No âmago do “Tomismo”, em seu sentido nuclear, milagre não guarda relação de intimidade com o surreal, mas sim com o fidedigno, que é apenas improvável. Mesmo assim, Khadiri deu por herança a Najeeb o milagre ambíguo da vida, antes de desaparecer sem rastros nos escavados do mundo.

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Uma clara e apelativa intenção da obra em abscindir os tentáculos da genialidade e da emoção daquela tão especial criação, e se fez marketing. | Imagem: Divulgação/PVA.

Mesmo com toda a carga de obscurantismo que injetaram no final da criação, e em seu contexto nada idílico, há sim forte margem de concordância com o arcabouço literário “Tomista”, de modo muitíssimo especial quando a mensagem da obra dialoga fortemente com a ideia de que a alma humana é subsistente em seu existir moral, imortal em sua essência e única em cada ser humano irrepetível, o que nos faz a todos tendermos naturalmente para Deus. Há de tudo “Tomista” em “The Goat Life”, e tudo há em “Vida de Cabra” que oriunde de Tomás de Aquino: um samaritano, vários criminosos, um redentorista, dois prisioneiros, alguns energúmenos, dois inocentes e várias vítimas fatais, e a criminalidade bem diante dos olhos de Deus, que não dormitam. Desde a deidade até à crudelíssima presença infernista, convém conceber que a ética tomista tem a sua glória concentrada em todos esses movimentos, que por tudo são considerados naturais (inclusive do próprio Direito), e também racionais, ligando o ser a Deus, que, independente da severidade dos destinos, os seus efeitos culminam na visão ou na contemplação imediata do Criador, a razão de tudo.

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No pensar de Rawls, para que haja justiça verdadeira há de existir de fato escolhas livres, onde as partes desconheçam sua posição original (inclusive de poder), o que o próprio autor denominou de “Véu da Ignorância”. | Imagem: Divulgação/PVA.

A ilusão do triunfo também atinge ao Direito global, como ocorre em “Vida de Cabra”, onde a distância entre os povos ainda impede a Justiça de enxergar vidas humanas. E vou bem perto: no pensar de Rawls, para que haja justiça verdadeira há de existir de fato escolhas livres, onde as partes desconheçam sua posição original (inclusive de poder), o que o próprio autor denominou de “Véu da Ignorância”, no qual há a finalidade de se eliminar ou de se reduzir diferenças político-sociais e econômicas. No próprio contexto lá de “The Goat Life”, em sede de poder político, a idiossincrasia dominante – que é um componente formatador daqueles povos indianos e árabes – também é sedimento do preconceito, da ignorância em seu sentido lato, e da exploração humana. São também os efeitos dos mal-entendidos jurídicos que acabam por desmurar os pilares do amor humano. Aliás, precioso trazer ao presente cenário o velho poeta Manoel de Barros: “A palavra amor anda vazia, não tem gente dentro dela”.

Num contraponto a se ponderar, o forte aristotelismo andante no pensamento de Tomás de Aquino nem tanto se opunha às lógicas, por exemplo, “Agostinianas”, das vias oblíquas de Santo Agostinho (neoplatonista, por assim dizer), mas também não se moldavam aos seus termos, uma vez que, para aquele, a alma, inda que estruturalmente racional, conectava o homem a preceitos imerecidos de glórias terrenas, mas que repousava os resultados sobre o leito do Jusnaturalismo. Para este, também detentor de uma robustez no pensar do Direito Natural, fé e religião são sendas de construção do Direito e da Justiça, inseparáveis e indivisíveis, não dicotômicos, mas canônicos, e não sobrepostos, mas aliançáveis, a fim de que o merecimento estivesse conectado com Deus com a Justiça, e pelo Livre-Arbítrio. Najeeb era inteligente, tinha bom senso, era ingênuo, certamente desconhecedor do Direito, contudo, conhecedor das formalidades religiosas, mas duvidou, vituperou, blasfemou, mas se salvou. “Tomista” Najeeb, mas talvez nunca tenha ouvido falar em São Tomás de Aquino. Que a liberdade nos acolha, e que o livre-arbítrio seja exitoso em nossas escolhas. “The Goat Life” é uma criação esplendorosa, de engasgar e emocionar. Uma lição completa de suportabilidade das vicissitudes.

Da Redação: Paulo Queiroz, para o Portal Voz Amazônica e para a Rádio TV Cultural da Amazônia.

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Paulo Queiroz

Escritor, poeta, editor, antropólogo e professor universitário. Comendador pela Câmara Brasileira de Cultura (CBC). Radialista e jornalista: MTb 0001421-DRT/AM, Matrícula nº 3857. Presidente da Associação Brasileira de Escritores e Poetas Pan-Amazônicos (ABEPPA) e da Academia de Letras, Ciências e Culturas da Amazônia (ALCAMA). Membro Honorário da Academia de Ciências e Letras Jurídicas do Amazonas (ACLJA), da Academia de Letras, Ciências e Artes do Amazonas (ALCEAR), da Associação dos Escritores do Amazonas (ASSEAM), da Academia de Letras do Brasil (ALB/AM), entre outras. Professor de Ciência Política, Antropologia Jurídica, Metodologia do Estudo Jurídico, TCC, Filosofia do Direito, Iniciação Científica, Ética e Deontologia Jurídica e Direito Constitucional. Psicanalista Forense em formação.

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