Nós, porém, que somos autênticos legatários de Ernesto Penafort, acreditamos que não há nada que obrigue um coração livre a rimar com balão. A liberdade, conquanto respeite a rima, também injeta coragem para rimar azul com paixão e coração com desejo.
Sempre achei que a Literatura fosse uma espécie de pórtico para o acesso à emancipação de um artista. E continuo crendo nisso de modo intransigente. No mesmo diapasão, creio que obstaculizar a Poesia é violentar o ímpeto da poiésis enquanto espírito da criação humana. E toda vez que penso, por onde quer que eu vá e onde quer que eu esteja, sobre como seria impossível vivermos hoje o sentimento poético como se vivia no tempo de Ernesto Penafort e de seus contemporâneos do louvado “Clube da Madrugada”. Naquele tempo, a poesia era azul, o sentimento era um sinal na alma e a literatura falava com a voz de uma ‘autoridade’ democraticamente amorosa, a despeito de todas as privações que os poetas e escritores experimentavam, inclusive pelo desamparo e brutalidade insana com os quais eram tratados pelos facínoras da velha política vigente.

A profundidade que marcava a obra de Ernesto Penafort outorgou-lhe um sentido ainda mais marcante quando ele foi carinhosamente batizado por seus pares de “O Poeta do Azul”, cuja essência e apologia se firmaram por sua paixão pela mencionada cor em si, mas não somente por isso, também pela auspiciosa explicação ensinada a partir de sua companheira de todas as horas – sobretudo das últimas – Lenir Feitosa, “A Poderosa”: professora universitária e escritora romancista que o amou, e que ouviu os seus ulteriores suspiros poéticos. Lenir é escritora fundadora da Associação Brasileira de Escritores e Poetas Pan-Amazônicos (ABEPPA) e da Academia de Letras, Ciências e Culturas da Amazônia (ALCAMA).

A bem da verdade, a lição sobre o azul consiste na sua inexistência material, isto é, a partir da simples visão do céu, cuja cor é surreal, imaginária, esfíngica e enigmática (foi assim que a minha velha percepção concebeu). O azul nada mais é do que a fusão de infinito com a impressão da pseudo-finitude que caracteriza a morada do Eterno, lá no alto, onde o fim humano da contemplação das nuvens é fragmentado pela negritude intangível do espaço sideral, cuja cessação ninguém sabe onde está, se é que existe. Assim, o sentimento e a emoção, e a semiótica e a metalinguagem, se faziam uma espécie de ‘filosofia elementar’ que abundava na poesia “penafortiana”, “imorrível”, perene, perpétua.
Aquilo que entendemos como a denominada realidade poética da imagem, dura, dogmática, normativa, a partir de Penafort se tornou liberdade de criar, escrever e poetizar o mundo circundante, lançando mão de tudo o que era possível. O “Poeta do Azul”, mestre inspirador e formador de gerações de poetas teimosos, viveu num tempo em que das pedras espremidas emanavam o ‘licor’ da essência literária, numa era em que a ebriedade latente em seu corpo – também companheira dos seus dias –, adicionada à inexorável truculência dos perseguidores de homens livres, e fundida à ausência cabal de subvenção aos grandes adoradores das palavras, era a tônica do cotidiano despótico daqueles dias.

Ernesto Penafort deixou em nós um ideal poético azul, para que sejamos imaginativos e ornados de uma liberdade que não admite engessamentos, e que não concebe fatores impeditivos do avanço de nossa marcha rumo a essa cor inexaurível, como ensinou o próprio mestre em “A Medida do Azul”: “(…) A medida do azul, pelo contrário, não é ver no horizonte o fim do olhar, mas o ter desta vida aonde chegar, pois ali tem o mundo o seu ovário: e o retorno acontece sempre estável, eis que o azul é o início do infindável”. Pontual e bastante, é o que penso, e estou certo.

Num dia relativamente longínquo, quando eu tive o prazer desmesurado de abraçar o seu contemporâneo pós-madrugada, escritor da literatura sacrossanta, Max Carpentier – que já foi presidente da Academia Amazonense de Letras –, entre uma meia-dúzia de temas conversados naquele lacônico encontro, falamos de Ernesto Penafort. Aliás, Carpentier, nesse particular, desenvolve grandes tesouros frasais acerca do “Poeta do Azul”, inclusive já tendo inúmeras vezes palestrado com augusta proeminência sobre o arcabouço literário sentimental de Penafort (eis um sentido da poiésis). Carpentier, assim como eu, guerreia na tentativa – até por vezes utópica – de afastar o fantasma da “desmemória”, essa coisa fenomenológica danosa que é repleta de condutas ignomínias da parte dos que têm a missão de eternizar a memória, mas que agem às avessas.

O comportamento heterodoxo dos que pugnam pela extinção das memórias, reflete as desgostosas lembranças dos tempos infaustos da perseguição aos artistas, contida no âmago sombrio das ações autoritárias do passado, onde os poderosos, que tinham (ou têm?) devoção apaixonada pela inveja e pela mentira, desencadeavam de modo selvagem a sensação do medo de falar, de escrever e de criar: um atentado à poiésis. A finalidade era nulificar a expressão dos escritores, envolvendo-os num ostracismo intencional, ambicionando obscurecer a força que os poetas possuíam. Os prepotentes conseguiram, de alguma maneira, alcançar o seu objetivo, porque aniquilaram da história poetas valiosos, mas fracassaram quando não triunfaram na supressão do nome inextinguível de Ernesto Penafort, que não deixou a sua assinatura apenas nas marcantes obras que escreveu, mas também no Livro Sagrado, a sua Bíblia Católica pessoal. A crença do poeta, mesmo aparentemente circunspecta, talvez o tenha eternizado.

E no que pese a escandalosa e injusta escassez de memórias “penafortianas”, de registros pouco perambulantes pelos labirintos históricos da Amazônia, e de inauditos tributos ao grande “Poeta do Azul”; e nada obstante as instâncias públicas ligadas à memória literária fazerem da prevaricação a sua bandeira flamejante, se salva um único ato registral que imortaliza o escritor, emprestando o seu brioso nome à Escola Estadual Ernesto Penafort, no bairro de São José Operário, Zona Leste da capital do Amazonas. Ato este, que conjuntamente com os seus livros físicos ainda remanescentes, fundam uma esperança melancólica de que a sua obra não morrerá, para o que nós dizemos amém!

Abandono, solidão e morte sempre serão irremissíveis, que nem o são a pouquidade de talento, a catalepsia de dons e a preguiça imaginativa dos poetas enfadonhos que veneram as vãs repetições, e que vemos muito por aí. Nós, porém, que somos autênticos legatários de Ernesto Penafort, acreditamos que não há nada que obrigue um coração livre a rimar com balão. A liberdade, conquanto respeite e até consagre a rima, também injeta coragem para rimar azul com paixão e coração com desejo. Somos poetas livres, porque o “Poeta do Azul”, dado à luz em Manaus, também iluminou os pensadores do Careiro, de Tefé, de Santo Antônio do Içá, de Boca do Acre, e de todos os limites fronteiriços que moram na Amazônia.
Somos criativos, não repetitivos. Salve Ernesto Penafort! Salve o “Poeta do Azul”!
Da Redação, Paulo Queiroz para o Portal Voz Amazônica.
Respostas de 4
Assim como o azul representa a imensidão, o imensurável, o infinito, Penafort representa a grandeza e riqueza da poesia e literatura cabocla amazonense.
Estimado João Coelho, pontual a sua colocação. Muito obrigado. Abração.
Esse texto é lindo, profundo e emocionante.
Linda Flor, grande amor, obrigado. Bjão.