(Ensaio sobre um povo taciturno e a filosofia jornalística emudecida)
Diógenes, o esmoleiro cínico que muito discrepava, mas que vociferava sabedoria e verdades, quando escolheu não se locupletar das relações que lhe eram postas, e se ausentou da ganância, fundindo o seu moído corpo aos corpos das multidões de prófugos do povo, saiu de seu barril-moradia para acender a lanterna diurna que o punha à caça de homens que ardessem em poder de honra e de probidade. Não achou um sequer.
Já me atrevi, outrora, a divergir de Arendt, mesmo sem nunca ter trocado uma palavra sequer com essa celebrada autora. Só que a razão está sim com ela. Se não, vejamos: “A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele”. Eis um exercício de racionalidade que salta aos olhos. Pois é, fato é que, amar o povo, amar o mundo, não é uma tarefa assim tão fácil. O viés de resolução mais poderoso desse clássico dilema está na Educação, sempre, pode crer, ela é poder. Um povo educado, instruído, civilizado, é verdadeiramente detentor de poder.
Transformar pelo trabalho, pelo conhecimento, pelo amor, e tudo isso é poder, e todos esses atributos devem ser uma vocação do povo. Mas, a sua voz, continua sendo mera utopia?… E como é que se acredita nas pessoas, na política, no futuro, no povo? Responde-se a tais inquietações, penso eu, pela aptidão da coragem de falar, mesmo que seja “pela boca de Deus”, como alvitram os presbíteros e os prelados, cuja envolvência social quase sempre é longínqua do povo que necessita falar, que está acordado para as angústias futurísticas. Vivemos uma estação na qual o sonambulismo prodigalizador costura a boca do povo, que gasta o seu tempo com bravatas e falácias, em detrimento de seus próprios sonhos e agravando as suas sobejantes utopias.

O que seria do homem sem a utopia? A utopia é um gelo que só a gente vê, quando a garganta está incendiada e estamos longe do socorro ideal, e isso também é poder. Ela é um olhar de amor que achamos que é para nós, mas ele apenas passa raspando a nossa percepção real. É um beijo profundo, desses que fazem a gente sentir que ganhou na loteria, mas, quando acordamos, estamos desvalidos e desprovidos de opulência, mas sentimos enorme vontade de jogar na sorte. A utopia parece um elogio que chega quando a gente sente que é o menor dos pequeninos e o mais frágil dos plebeus, e daí procuramos crescer. A utopia é como o dissabor de uma Benzetacil 1.200.000 UI num corpo cheio de escabiose, e que nos limpa, quando a gente se sente inútil. Utopia é acreditar em um alguém pelo qual ninguém aposta mais um único centavo. A utopia salva, a quimera arruína. Mas, e a voz do povo?

“Vox Populi, Voz Dei” – cuja estrutura nuclear é leito do sono letárgico da incredulidade –, é uma espécie de alusão proverbial que carrega controversa identificação originária, mas na obra crepuscular – que eu gostava de ler sempre à boca-da-noite – do estoico Sêneca, o “Tratado Sobre a Clemência”, há referência crucial dessa sugestiva concepção de que a vontade popular é a substância essencial e única para determinar que o poder pertence indiscutivelmente ao povo. Acreditar nisso hoje em dia é um desafio quase inexequível, e não fosse pelas fleumáticas e plácidas – por vezes neurastênicas – apologias da Constituição Federal vigente, estaríamos ainda mais distantes da crença nessa argumentação sobre a imprescindível esperança de que o povo será de verdade, um dia, dono do poder. Mas o povo anda terrivelmente descrente da força que tem o seu poder inegável, mesmo já tendo crido nela, e esse ceticismo se torna robusto quando a sua confiança naqueles que deveriam zelar por seus direitos, se nulifica, porque eles prevaricam, defraudam, esbulham, e fogem às lutas.
Enquanto a história defende a força dessa crença em forma de brocardo, a ovacionada máxima que, além da beleza estética metalinguística fascinante que possui, e por sua discutível capacidade de criar sentimento de convicção e potestade, e que traz em seu eixo semiótico a designação divina e representativa desse poder natural, o povo se afasta da real possibilidade de dominação social, como ambicionara o sonho arquetípico de Aristóteles, onde a felicidade repousava em abraços de simplicidade, sem simplismo, mas com o vigor nada efêmero dos esforços, das conquistas, das compensações, da meritocracia, dos estudos, de ausência da consuetudinária luxúria, e muitas vezes sem sentir-se a doçura do sono. O arcaico filósofo anelava deixar penetrar na consciência do povo o poder da sabedoria, pela multiplicação de suas vozes, e sofria oblíquos revezes quando o mesmo povo murchava e estropiava as próprias línguas, por medo.

Diógenes, o esmoleiro cínico que muito discrepava, mas que vociferava sabedoria e verdades, quando escolheu não se locupletar das relações que lhe eram postas, e se ausentou da ganância, fundindo o seu moído corpo aos corpos das multidões de prófugos do povo, saiu de seu barril-moradia para acender a lanterna diurna que o punha à caça de homens que ardessem em poder de honra e de probidade. Não achou um sequer. E ao confrontar o mais poderoso de todos os homens do seu tempo, descreu da tão afamada força daquele que estava bem ali diante dele, e que poderia matar e fazer nascer a quem quisesse, cuja aparência traduzia o mais alçado emblema de predomínio, e recusou, porém, as mais cobiçadas benesses que lhe investiriam de poder imperial. A única coisa que lhe apeteceu naquele lacônico diálogo, foi que o monarca saísse da frente do seu sol, pois o estava bloqueando. Aquilo se firmou como um exercício de poder, e para tal, o pensador usou a voz.
Não seria aqui impróprio inferir que o povo nasceu com a essência potestativa, todavia ainda não aprendeu a exercer o poder genuíno que toscaneja perturbadoramente em seu condescendente espírito. Se existe alguma relação visceral de poder entre a Divindade e o povo moderno, ainda não a conhecemos de todo – quiçá, nem de menos. Para nós, Cristãos, cuja apologética advoga que Deus é o distintivo máximo e sobranceiro de poder e de jurisdição, acima do qual nenhum outro há nos panteões espalhados pelo Universo, não seria assim tão imprudente pensar que a Sua voz jamais fora ouvida, exceto pelo que se sabe acerca dos contextos que atestam alguns episódios da história, nos quais deliram juntas a zetética e a aporética, no que diz respeito às coisas de Deus e de Sua afinidade com o povo. A dúvida – sobretudo a cartesiana – também é poder, e já mostrou que é capaz de nos levar à verdade, por isso, pensamos, logo existimos. E se são verdadeiras então tais premissas, quando vocifera o povo omitindo o seu poder e as suas absorções, significa pensar que ele assim se atemoriza e se acovarda? Essa indagação dar à luz outra ainda mais perigosa: como exercer o poder sem a riqueza?

A voz do povo, mesmo exausta de fertilidade, tem poder até nos tribunais, mormente quando a comoção social se agiganta e move a mão do julgador para a convenção de uma justiça retributiva enérgica e lancinante. As vozes populares são de quase todo vingativas, e isso é entendido muitas vezes como poder. A riqueza, por sua vez, principia a sua consolidação quando do exercício do poder de escolha, e da escolha promissora; é quando ela se faz. O poder é assegurado ao povo regularmente, a cada dois anos – em alguns casos, em menor período – e, não raro, ele mesmo, o povo, opta pelo piormente disponível para tutelar os seus anseios. Dessas opções malfadas germinam ilusões, decepções, atrocidades, desesperança, revolta… O povo planta, o povo escolhe; o povo sofre, o povo colhe.
Sem demora, se avizinha aí mais uma chance de exercício de poder; de poder popular, em breve. Até lá, “A voz do povo, a voz de Deus”, será uma arquitetura frásica sobrecarregada de significações utópicas que ambicionaremos sempre, mas da qual ainda descremos com vigorosa amplitude. Que o povo fale!